Uma sentença da 6ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo reacendeu o debate sobre os planos “falsos coletivos” – contratos empresariais que, na prática, abrigam apenas um núcleo familiar.
O caso analisado pelo TJ/SP envolveu um plano da Bradesco Saúde S/A cuja mensalidade saltou de R$ 11 mil em 2020 para R$ 26 mil em 2025, um reajuste acumulado de 130,24%, valor quatro vezes superior ao limite fixado pela ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar no mesmo período.
A decisão reconheceu a natureza híbrida e atípica do contrato, determinando que o plano fosse equiparado à modalidade familiar, com aplicação dos índices oficiais da ANS e restituição dos valores pagos a maior.
O caso
A ação foi proposta por um microempreendedor e sua família, beneficiários de um plano coletivo com apenas três vidas (o titular, sua esposa e a filha), sem qualquer vínculo empregatício.
Os advogados, representantes dos autores, sustentaram que se tratava de “fraude estrutural de mercado”, em que operadoras mascaram contratos familiares sob a forma de coletivos empresariais para escapar da regulação pública.
Na petição, foi demonstrado que, caso os índices oficiais da ANS fossem aplicados, a mensalidade de 2025 não ultrapassaria R$ 14 mil, o que evidenciou uma cobrança 83% acima do valor permitido.
Fundamentos da decisão
Ao julgar o processo, a juíza reconheceu a inexistência de vínculo empresarial legítimo e destacou que tratava-se de uma demanda envolvendo contrato de seguro saúde coletivo com três vidas, todas do mesmo núcleo familiar. Diante de tais particularidades, não são aplicáveis as disposições legais ordinárias que regulam os contratos de plano de saúde empresarial coletivo.
A magistrada citou o art. 5º da RN 195/09 da ANS, que exige relação empregatícia ou estatutária entre a pessoa jurídica e os beneficiários, afastando a validade do enquadramento como plano empresarial.
Com base nisso, reconheceu a figura do “plano de saúde falso coletivo”, já consolidada na jurisprudência do STJ, e aplicou a lei 9.656/1998 e o CDC.
“Ainda que o contrato tenha denominação distinta (empresarial, coletivo etc.), o plano de saúde firmado deve ser interpretado à luz das normas aplicáveis aos contratos individuais e familiares, visto que se trata, em verdade, de contrato coletivo atípico, de natureza híbrida, reclamando a mesma proteção devida aos planos individuais.”
A sentença determinou, portanto, a aplicação dos índices de reajuste definidos pela ANS e a devolução simples dos valores pagos a maior nos últimos três anos, conforme o art. 206, §3º, IV, do CC.
Reajuste abusivo e vulnerabilidade do consumidor
A magistrada entendeu que os reajustes feitos pela Bradesco Saúde extrapolaram os limites da razoabilidade, violando o equilíbrio contratual. Por isso, determinou que fosse aplicado o índice de reajuste previsto pela ANS para planos individuais e familiares.
Além da limitação dos aumentos, a sentença determinou a atualização das quantias conforme o IPCA e a aplicação da nova sistemática de juros prevista na lei 14.905/24, que vincula o cálculo à diferença entre a taxa SELIC e o IPCA.
O julgado reafirma que, em contratos de saúde suplementar, a vulnerabilidade do consumidor deve prevalecer sobre a forma contratual, especialmente quando se trata de idosos, para quem aumentos sucessivos podem significar exclusão indireta do sistema privado.
Conclusão
A decisão paulista consolida o entendimento de que planos empresariais com poucas vidas – compostos por familiares sem vínculo empregatício – devem ser equiparados aos planos individuais/familiares, com todos os efeitos regulatórios e protetivos daí decorrentes.
Mais do que uma correção técnica, a sentença reafirma o papel do Judiciário como guardião do equilíbrio contratual e da dignidade da pessoa humana, princípios que permeiam a lei dos planos de saúde, o CDC e a Constituição Federal.
“Ante a vulnerabilidade concreta da parte autora segurada, incidem tanto as disposições protetivas aplicáveis aos planos de saúde individuais/familiares previstas na lei 9.656/1998, como também o CDC.”
Ao impor limites à prática dos “falsos coletivos”, o TJ/SP não apenas protege o consumidor, mas restabelece a função social do contrato de saúde – um instrumento que deve garantir acesso, e não exclusão.
Fonte: Site Migalhas
