Justiça de São Paulo reconhece validade de registro de união poliafetiva como contrato particular

A Justiça de São Paulo decidiu manter o registro lavrado em Cartório de Títulos e Documentos de uma união poliafetiva entre três homens. A decisão da 1ª Vara Cível de Bauru esclarece que, embora a legislação brasileira não reconheça a união poliafetiva como entidade familiar, nada impede que esse tipo de relação seja formalizado como contrato entre particulares.

O caso teve início quando os três companheiros registraram um termo de união estável poliafetiva. O registro foi feito por uma servidora do cartório, mas posteriormente questionado pelo oficial de Justiça, que instaurou procedimento administrativo, aplicou advertência à funcionária e suspendeu os efeitos do documento. Na Justiça, o oficial pediu o cancelamento definitivo do registro.

A sentença da Justiça paulista mostra que a Constituição Federal e o ordenamento jurídico brasileiros garantem aos particulares a liberdade de firmar negócios jurídicos que não sejam expressamente proibidos por lei. Assim, embora o Estado não reconheça esse tipo de união como uma entidade familiar – com os efeitos da união estável ou do casamento –, é possível o registro declaratório em cartório.

A decisão ressalta que o Provimento 37/2014, da Corregedoria Nacional de Justiça, também não impede esse tipo de registro. Além disso, reconhece o documento como um negócio jurídico de natureza privada, com efeitos restritos às partes, e nega o pedido do oficial de Justiça para o cancelamento do termo.

Entidade familiar

A registradora Márcia Fidelis Lima, presidente da Comissão Nacional de Registros Públicos do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, esclarece que a admissão do registro de contrato de união poliafetiva em Títulos e Documentos pelo TJSP não equivale ao reconhecimento dessa relação como entidade familiar, nos moldes da união estável ou do casamento.

Ela destaca, no entanto, que a medida representa um avanço significativo ao conferir publicidade e segurança jurídica ao pacto firmado entre as partes, o que possibilita a organização de direitos e deveres patrimoniais, como partilha de bens e divisão de despesas, com maior previsibilidade e eficácia perante terceiros.

“Em um cenário no qual o reconhecimento pleno como entidade familiar ainda não está consolidado – conforme, inclusive, as orientações administrativas do CNJ –, essa medida representa uma forma de o Direito salvaguardar a autonomia da vontade e a dignidade das pessoas envolvidas, mesmo que se limite à esfera contratual. É um reconhecimento pragmático da realidade social dos afetos múltiplos, sem forçar um enquadramento que ainda carece de maior amadurecimento no ordenamento jurídico”, afirma.

A especialista explica que o Provimento 37/2014, do CNJ, regulamenta o registro da união estável nos cartórios de registro civil, limitando-o à convivência “entre duas pessoas”. Nesse sentido, ele não autoriza o registro de uniões poliafetivas com efeitos de entidade familiar no Registro Civil de Pessoas Naturais – RCPN. No entanto, a decisão do TJSP interpreta que essa restrição se aplica especificamente aos efeitos familiares, e não ao Registro de Títulos e Documentos – RTD.

“O Tribunal argumenta, com base no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, que ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. Como não há vedação legal expressa ao registro de instrumentos particulares declaratórios de união poliafetiva no RTD, as orientações administrativas não podem criar restrições não previstas em lei formal. Essa distinção se baseia na compreensão de que o RTD tem função meramente declaratória para dar publicidade a atos válidos entre as partes, sem constituir direitos de família ou estado civil, diferentemente do RCPN, que visa formalizar o reconhecimento documentando oficialmente estados civis”, afirma. 

Reconhecimento

A registradora acrescenta que o Provimento 37/2014 deve ser interpretado como uma norma que delimita o reconhecimento oficial de entidades familiares, e não como uma proibição absoluta ao registro de contratos privados. Segundo ela, é plenamente possível dar publicidade a acordos patrimoniais ou de convivência por meio do registro em Títulos e Documentos, desde que não se atribuam a esses contratos os efeitos jurídicos típicos de uma união estável reconhecida pelo Estado.

Sendo assim, ela entende que o principal limite da decisão judicial está na ausência dos efeitos típicos das entidades familiares legalmente reconhecidas, como o direito à pensão por morte, à herança legítima, à inclusão como dependente em planos de saúde ou à adoção conjunta de filhos.

“Ao restringir o reconhecimento à esfera contratual, o Estado não garante a essas relações os direitos constitucionais que decorrem da proteção à família, conforme previsto no artigo 226 da Constituição Federal, que reconhece a união estável entre homem e mulher, e, por extensão, a homoafetiva, sempre entre duas pessoas”, diz.

Segundo a especialista, essa realidade exige que os conviventes adotem uma postura mais cautelosa, organizando-se por meio de contratos que tratem de aspectos patrimoniais, sucessórios e de convivência. Para isso, recomenda recorrer a instrumentos como testamentos, procurações e contratos de coabitação, que formalizam os acordos entre as partes. Ela também destaca que o acompanhamento de advogados especializados pode ser essencial para garantir a validade e a segurança jurídica desses instrumentos.

E acrescenta: “Ainda que os limites sejam evidentes, a possibilidade de registro contratual já representa um avanço significativo, pois confere visibilidade e segurança jurídica a essas relações, retirando-as da total invisibilidade. É um reconhecimento da autonomia privada, da vida real e da liberdade de escolha, e um convite contínuo ao debate legislativo e doutrinário sobre a evolução das formas de família, que futuramente poderão levar a um reconhecimento mais amplo”.

Fonte: site Migalhas

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